NO OLHO DO FURACÃO

Marcos Pontes
25/09/2005

O sol brilhava intensamente. O calor era insuportável. No mínimo 40 graus. Os olhos e o nariz ardiam com os gases de combustão e o cheiro de gasolina dos motores. Qualquer brisa seria muito bem vinda. Mas o ar estava parado, como no momento, sem fôlego, que antecede algo terrível. De tempos em tempos era necessário fechar as janelas e ligar o ar-condicionado. O alívio durava apenas alguns minutos, até o indicador de temperatura do carro subir perigosamente. Não seria uma boa idéia ficar ali, no meio daquela estrada, e arriscar a possibilidade de enfrentar no dia seguinte a chuva e os ventos de mais de 200 km/h, sem proteção. Eram milhares de carros, caminhões, ônibus, todos os tipos possíveis de veículos, lotados de documentos, animais, fotos, recordações, roupas, comida, água, o mínimo, que cada uma daquelas pessoas considerou essencial salvar da fúria do “Rita”, que se rapidamente se aproximava e ganhava força no Golfo do México. O furacão com ventos de mais de 300 km/h e com uma área de impacto do tamanho de Minas Gerais, já era categoria 5, o maior nível na escala de destruição desses fenômenos naturais. Já estava entre os três maiores na história dos Estados Unidos. Houston e Galveston estavam exatamente no caminho “previsto” do monstro. Galveston, bem perto de casa e palco da maior destruição por esses fenômenos na história americana, em 1900, já havia atendido ao comando de evacuação mandatória. Era, no momento, uma cidade fantasma. Enquanto isso, ali na estrada, fugindo para o norte pela “highway” I-45, o olhar perdido de preocupação e sono dos refugiados refletia o pensamento comum de perda iminente do trabalho de anos e anos, que literalmente poderiam ser carregados pelo vento e/ou inundados na enchente. As imagens dos terríveis estragos causados pelo furacão “Katrina”, que há apenas três semanas havia atingido e devastado a cidade de New Orleans, destruindo casas, prédios e vidas, repassavam insistentemente, numa sequência infinita , na mente de todos nós. Por certo, não queríamos ficar na mesma situação daqueles teimosos moradores, ilhados sobre os telhados de suas casas por dias e dias, esperando pelo resgate, enquanto nós, o restante do mundo, assistíamos pela TV.
“Inacreditável! Isto não pode estar acontecendo conosco! Justamente agora!” desabafou Fátima, minha mulher, balancando a cabeça enquanto avaliava a seriedade da situação.
Saímos de casa às oito horas da noite. O dia tinha sido de trabalho intenso, escolhendo o que salvar conosco e embalando o que ficaria, guardado em sacos plásticos, amarrado nos pontos mais altos do interior da casa. Era a esperança de que alguma coisa pudesse sobreviver à tormenta. A viagem de 300 km entre Houston de Dallas durou 17 horas em primeira marcha. Dirigir continuamente por esse período, após um dia completo de preparação de material em casa, foi um desafio à parte. O sono tornou-se quase incontrolável nas últimas horas da viagem. A partida foi lenta e triste, deixando para trás cansaço e vulnerabilidade. Aviagem foi longa, com tempo de avaliar a nossas vidas e prioridades. A chegada em Dallas foi feliz com a certeza de termos salvo tudo o que mais importa na vida: as pessoas que amamos.

O governo do Texas e as autoridades locais, armados com as lições recentemente aprendidas durante o furacão “Katrina” em New Orleans, trataram cedo das providências para evacuar as áreas prováveis de impacto pelo “Rita”. Análises sobre a trajetória da tormenta, possíveis áreas de enchente, listas de material essencial, procedimentos de emergência e rotas de fuga estiveram nos meios de comunicação locais durante toda a semana. A região de Houston, quarta maior cidade americana, tem uma população de 5.3 milhões. Estima-se que, desde quarta feira a noite, metade dessa população tenha partido para as estradas que levam ao norte. Todas as faixas foram direcionadas no sentido de saída da cidade. Mesmo assim, todas as estradas pareciam enormes estacionamentos. Carros de polícia, ambulâncias e bombeiros passavam apressados pelo acostamento com um show de luzes e sirenes, enquanto milhares de nós aguardávamos o próximo metro.
Centenas de carros com o capô aberto, sem combustível ou com algum outro problema, ficaram pelo canteiro central. Pessoas se ajudavam, transportando o que era possível nos veículos que ainda funcionavam. Gasolina era um problema sério. Somente alguns postos no caminho possuiam o precioso líquido. As filas eram intermináveis, assim como aquelas para os banheiros.

A área de Houston é o maior centro de produção e processamento de petróleo dos Estados Unidos. Um impacto direto sobre a cidade teria consequências enormes sobre esse fator da economia do país. Além disso, outros setores de destaque da cidade como as pesquisas médicas (Houston Medical Center) e as atividades espaciais seriam fortemente afetadas. Esta semana, o controle da Estação Espacial Internacional foi passado inteiramente para o Centro de Controle em Moscou na Rússia.

Em Johnson Space Center todas as operações foram canceladas, a partir de quarta feira, sem previsão de retorno. A construção da Estação Espacial Internacional, já afetada em termos de cronograma devido ao atraso do retorno ao vôo dos ônibus espaciais, poderá ser ainda mais atrasada, a depender os impactos do furacão em Houston e no que restou de New Orleans, onde o tanque externo da espaçonave é construído.
Quanto ao treinamento na Rússia e a decolagem para a realização da primeira missão científica orbital brasileira, as datas permanecem as mesmas. No cronograma atual, ainda dependente da assinatura final do contrato entre a Agência Espacial Brasileira e a Agência Espacial Russa, eu deverei seguir para início de treinamento em “starcity”, a 25 km de Moscou, até o final deste mês de setembro. O vôo deverá partir de Baikonur, Cazaquistão, em abril de 2006. Trouxe comigo meus livros de Russo e os manuais técnicos das espaçonaves.

As notícias atuais dão conta de que o “Rita” desviou-se ligeiramente para a direita, apontando seu centro para a divisa dos estados do Texas e Louisiana. Contudo, os efeitos se espalham por muitos kilometros ao lado da linha central. Ainda não sabemos quais serão exatamente os impactos do furacão em Houston, ou em qualquer outra cidade que seu “quase imprevisivel” caminho o levar. Esses fenômenos naturais são, de certa forma, comparáveis a vários outros “fenômenos não naturais” aos quais acabamos por ficar sujeitos à ação destrutiva, por escolha própria ou não. Quanto ao “Rita”, ainda não sabemos quantas pessoas perderão o lar, ou a vida. Mas sabemos, com certeza, que existe a força humana em resistir. Persistir para reconstruir. Sabemos que o espaço destruído pela fúria da tormenta será ocupado por novas casas, prédios, ruas, jardins, crianças brincando. Destruir é a natureza do furacão, e de outros fenômenos “naturais ou não”. Mas, sobreviver, ser feliz, são partes da natureza humana. Que essa natureza seja hoje, e sempre, muito forte. Que ela dê frutos, esperança, exemplo e vitórias para as gerações futuras.