O
sol brilhava intensamente. O calor era insuportável. No
mínimo 40 graus. Os olhos e o nariz ardiam com os gases
de combustão e o cheiro de gasolina dos motores. Qualquer
brisa seria muito bem vinda. Mas o ar estava parado, como no momento,
sem fôlego, que antecede algo terrível. De tempos
em tempos era necessário fechar as janelas e ligar o ar-condicionado.
O alívio durava apenas alguns minutos, até o indicador
de temperatura do carro subir perigosamente. Não seria
uma boa idéia ficar ali, no meio daquela estrada, e arriscar
a possibilidade de enfrentar no dia seguinte a chuva e os ventos
de mais de 200 km/h, sem proteção. Eram milhares
de carros, caminhões, ônibus, todos os tipos possíveis
de veículos, lotados de documentos, animais, fotos, recordações,
roupas, comida, água, o mínimo, que cada uma daquelas
pessoas considerou essencial salvar da fúria do “Rita”,
que se rapidamente se aproximava e ganhava força no Golfo
do México. O furacão com ventos de mais de 300 km/h
e com uma área de impacto do tamanho de Minas Gerais, já
era categoria 5, o maior nível na escala de destruição
desses fenômenos naturais. Já estava entre os três
maiores na história dos Estados Unidos. Houston e Galveston
estavam exatamente no caminho “previsto” do monstro.
Galveston, bem perto de casa e palco da maior destruição
por esses fenômenos na história americana, em 1900,
já havia atendido ao comando de evacuação
mandatória. Era, no momento, uma cidade fantasma. Enquanto
isso, ali na estrada, fugindo para o norte pela “highway”
I-45, o olhar perdido de preocupação e sono dos
refugiados refletia o pensamento comum de perda iminente do trabalho
de anos e anos, que literalmente poderiam ser carregados pelo
vento e/ou inundados na enchente. As imagens dos terríveis
estragos causados pelo furacão “Katrina”, que
há apenas três semanas havia atingido e devastado
a cidade de New Orleans, destruindo casas, prédios e vidas,
repassavam insistentemente, numa sequência infinita , na
mente de todos nós. Por certo, não queríamos
ficar na mesma situação daqueles teimosos moradores,
ilhados sobre os telhados de suas casas por dias e dias, esperando
pelo resgate, enquanto nós, o restante do mundo, assistíamos
pela TV.
“Inacreditável! Isto não pode estar acontecendo
conosco! Justamente agora!” desabafou Fátima, minha
mulher, balancando a cabeça enquanto avaliava a seriedade
da situação.
Saímos de casa às oito horas da noite. O dia tinha
sido de trabalho intenso, escolhendo o que salvar conosco e embalando
o que ficaria, guardado em sacos plásticos, amarrado nos
pontos mais altos do interior da casa. Era a esperança
de que alguma coisa pudesse sobreviver à tormenta. A viagem
de 300 km entre Houston de Dallas durou 17 horas em primeira marcha.
Dirigir continuamente por esse período, após um
dia completo de preparação de material em casa,
foi um desafio à parte. O sono tornou-se quase incontrolável
nas últimas horas da viagem. A partida foi lenta e triste,
deixando para trás cansaço e vulnerabilidade. Aviagem
foi longa, com tempo de avaliar a nossas vidas e prioridades.
A chegada em Dallas foi feliz com a certeza de termos salvo tudo
o que mais importa na vida: as pessoas que amamos.
O governo
do Texas e as autoridades locais, armados com as lições
recentemente aprendidas durante o furacão “Katrina”
em New Orleans, trataram cedo das providências para evacuar
as áreas prováveis de impacto pelo “Rita”.
Análises sobre a trajetória da tormenta, possíveis
áreas de enchente, listas de material essencial, procedimentos
de emergência e rotas de fuga estiveram nos meios de comunicação
locais durante toda a semana. A região de Houston, quarta
maior cidade americana, tem uma população de 5.3
milhões. Estima-se que, desde quarta feira a noite, metade
dessa população tenha partido para as estradas que
levam ao norte. Todas as faixas foram direcionadas no sentido
de saída da cidade. Mesmo assim, todas as estradas pareciam
enormes estacionamentos. Carros de polícia, ambulâncias
e bombeiros passavam apressados pelo acostamento com um show de
luzes e sirenes, enquanto milhares de nós aguardávamos
o próximo metro.
Centenas de carros com o capô aberto, sem combustível
ou com algum outro problema, ficaram pelo canteiro central. Pessoas
se ajudavam, transportando o que era possível nos veículos
que ainda funcionavam. Gasolina era um problema sério.
Somente alguns postos no caminho possuiam o precioso líquido.
As filas eram intermináveis, assim como aquelas para os
banheiros.
A área
de Houston é o maior centro de produção e
processamento de petróleo dos Estados Unidos. Um impacto
direto sobre a cidade teria consequências enormes sobre
esse fator da economia do país. Além disso, outros
setores de destaque da cidade como as pesquisas médicas
(Houston Medical Center) e as atividades espaciais seriam fortemente
afetadas. Esta semana, o controle da Estação Espacial
Internacional foi passado inteiramente para o Centro de Controle
em Moscou na Rússia.
Em Johnson
Space Center todas as operações foram canceladas,
a partir de quarta feira, sem previsão de retorno. A construção
da Estação Espacial Internacional, já afetada
em termos de cronograma devido ao atraso do retorno ao vôo
dos ônibus espaciais, poderá ser ainda mais atrasada,
a depender os impactos do furacão em Houston e no que restou
de New Orleans, onde o tanque externo da espaçonave é
construído.
Quanto ao treinamento na Rússia e a decolagem para a realização
da primeira missão científica orbital brasileira,
as datas permanecem as mesmas. No cronograma atual, ainda dependente
da assinatura final do contrato entre a Agência Espacial
Brasileira e a Agência Espacial Russa, eu deverei seguir
para início de treinamento em “starcity”, a
25 km de Moscou, até o final deste mês de setembro.
O vôo deverá partir de Baikonur, Cazaquistão,
em abril de 2006. Trouxe comigo meus livros de Russo e os manuais
técnicos das espaçonaves.
As
notícias atuais dão conta de que o “Rita”
desviou-se ligeiramente para a direita, apontando seu centro para
a divisa dos estados do Texas e Louisiana. Contudo, os efeitos
se espalham por muitos kilometros ao lado da linha central. Ainda
não sabemos quais serão exatamente os impactos do
furacão em Houston, ou em qualquer outra cidade que seu
“quase imprevisivel” caminho o levar. Esses fenômenos
naturais são, de certa forma, comparáveis a vários
outros “fenômenos não naturais” aos quais
acabamos por ficar sujeitos à ação destrutiva,
por escolha própria ou não. Quanto ao “Rita”,
ainda não sabemos quantas pessoas perderão o lar,
ou a vida. Mas sabemos, com certeza, que existe a força
humana em resistir. Persistir para reconstruir. Sabemos que o
espaço destruído pela fúria da tormenta será
ocupado por novas casas, prédios, ruas, jardins, crianças
brincando. Destruir é a natureza do furacão, e de
outros fenômenos “naturais ou não”. Mas,
sobreviver, ser feliz, são partes da natureza humana. Que
essa natureza seja hoje, e sempre, muito forte. Que ela dê
frutos, esperança, exemplo e vitórias para as gerações
futuras.